Já reparou que depois de ter filho nossas memórias de infância voltam com tudo?
Esses dias li no perfil da revista Superinteressante no Insta (@revistasuper) sobre a memória mais antiga que uma pessoa pode ter. Lá dizia que, provavelmente, seria algo que aconteceu entre três ou quatro anos de idade, por razões ainda meio obscuras, mas que podem ter a ver com a imaturidade do cérebro e a falta de domínio da linguagem. Depois disso, passei um tempão tentando me lembrar de algo tão antigo da minha infância. Procurei algumas fotos e tentei organizar a ordem dos acontecimentos, mas tudo pareceu um quebra-cabeças daqueles bem difíceis - e o pior, com peças perdidas.Uma das primeiras coisas que me vieram à mente foram os pães de cebola que a minha avó fazia quando eu e minha irmã passávamos as férias na casa dela, no interior do Mato Grosso. Eram pães redondinhos, do tamanho de um limão, fofinhos e gostosos. Ainda consigo sentir perfeitamente o cheiro deles e me lembro da sensação de assisti-los crescendo no forno. Os pãezinhos desencadearam outras memórias culinárias relacionadas a minha avó: a assadeira de amendoim torrado sendo chacoalhada ao vento, para que as cascas saíssem voando e ela fizesse um delicioso pé-de-moleque, o misto-quente que transbordava queijo na sanduicheira, a rosca doce coberta com açúcar e coco ralado que ela ainda come no meio da tarde com sua xícara de café (que criança não podia tomar), as lambidas escondidas no prato da sopa, depois que acabava, porque aquela era a melhor sopa de legumes do mundo. Uma vez, cortei minha perna em um arame farpado e, com vergonha, segurei o choro porque estava com um adulto que não era da minha família. Cheguei correndo na casa da minha avó, com a roupa suja de sangue e o rosto quase roxo de tanto conter as lágrimas. Ela me deu uma maçã e pegou uma bola de algodão encharcada com uma mistura de álcool e confrei, uma planta medicinal que usava nos nossos machucados. A maçã servia para eu morder bem forte enquanto o algodão limpava a minha ferida - e fazia arder muito. Tenho uma cicatriz até hoje, mas não sei dizer há quantos anos ela está aqui. Um pouco antes, talvez, tenho nitidamente na memória a festa de aniversário da minha irmã com o tema Turma da Mônica: o Cebolinha e a Mônica estavam presentes em carne e osso. Eles se abaixaram pra falar comigo e eu fiquei embasbacada pensando como suas cabeças eram duras e gigantes. No mesmo salão de festas, de um prédio que se chamava Edifício Luciana, os teatrinhos de fim de ano eram organizados por mim, minha irmã e uma vizinha. Costumávamos distribuir convites de porta em porta, chamando todos os moradores para assistir nossas apresentações que continham vários atos: desde desfiles de moda, passando por peças de teatro e performances em que a gente dublava Sandy & Junior e Xuxa.Posso ficar horas aqui, descrevendo essas memórias de infância sem saber exatamente de que ano elas vêm. Nem sei se realmente aconteceram da maneira que estou contando. E não sei se para você, que lê este texto, é assim também. Tudo parece um grande emaranhado de fios ou uma sopa louca de letrinhas, em que às vezes as letras e os fios se encontram e o resultado é alguma coisa que faz sentido. Seria bem interessante se pudéssemos acessar tudo em pastinhas no desktop intituladas por anos - de 1986 a 2019, no meu caso - e dentro delas, mais pastas com subtítulos: aniversários, amizades, machucados, comidas, etc. Ou talvez não, talvez a graça seja exatamente essa, lembrar apenas de fragmentos que te marcaram e te ajudam a pensar no passado de uma maneira mais saudosista.